Vida
A verdade liberta
António Quadros e Costa, de 29 anos, tem vindo a perder mobilidade desde a adolescência, altura em que lhe foi diagnosticada uma doença degenerativa. “Apesar de ser uma carga de trabalhos todos os dias para mim e de às vezes resmungar – «não me apetece mais» – a verdade é que é assim, e a doença há de servir para alguma coisa.”
ENTREVISTA
António Quadros e Costa tem 29 anos, nasceu e cresceu em Beja, onde vive com os pais e com o irmão. Trabalha como engenheiro agrónomo numa empresa de fornecimento de água para agricultura e é também agricultor. Aos 15 anos, foi-lhe diagnosticada uma doença genética neuromuscular (Atrofia Muscular Espinhal Tipo 3), provocada por um gene que não produz a proteína responsável pela regeneração e manutenção dos neurónios motores, que, por sua vez, possibilitam o crescimento das células musculares. Tem vindo, desde aí, a perder músculo e todas as capacidades que deles necessitam. “É só isso” conclui simplesmente, depois de descrever a sua doença num fôlego.
O António tem amigos de todos os lados e de todas as idades. Cativa pela bravura com que olha de frente a realidade, vivendo intensamente tudo o que ela lhe traz – alegrias e dores, vitórias e derrotas, fascínios e desilusões, companhia e solidão –, sem censurar nada. Aqui está um verdadeiro alentejano, no qual não há fingimento.
A realidade que se impõe: do cavalo à cadeira de rodas
Conta-nos a tua história.
Tive uma infância saudável e normal, num meio rural e familiar, com muita liberdade. Na adolescência, era muito obstinado com a equitação. Era uma dedicação a 100%. A ideia depois seria competir e progredir como cavaleiro e
“tinha o sonho de ser cavaleiro profissional.”
Cheguei a fazer competições, mas poucas.
A certa altura, comecei a perder força a subir para o cavalo e a cair muitas vezes. A correr tinha movimentos estranhos, e em casa começaram (e eu também) a perceber que qualquer coisa não estava bem. Nunca fui um grande atleta, mas percebi que estava a piorar. A certa altura, decidiram levar-me ao médico. O neurologista diagnosticou a doença, que foi depois confirmada pelo exame genético.
“A doença tem vindo a evoluir desde aí.”
Não foi tudo naquele momento, mas o ter racionalizado que tinha um problema e dar-lhe um nome fez logo com que tivesse uma evolução repentina rápida. No dia em que fizeram o diagnóstico, saí do consultório e fui montar a cavalo, como tinha feito no dia anterior e como fiz no dia seguinte. Continuei a montar nos anos a seguir, mesmo com a doença. Comecei a ter de pôr um banco para subir para o cavalo, a correr cada vez menos, e, quando estava muito cansado, tinha dificuldade em subir escadas e em levantar-me sozinho do chão. Até que deixei de conseguir correr de todo e, com 20 e tal anos, passei a ter de andar maioritariamente de cadeira de rodas… E habituar-me a viver assim. Até há poucos anos, poderia viver sozinho. Hoje em dia não posso. Preciso de ajuda para me levantar, para me sentar, para me deitar, para ir para a casa de banho.
Diante das circunstâncias inevitáveis: do “não” ao “sim”
Como é que lidaste com o diagnóstico e com a tua doença?
Passei muitos anos – e tenho muita pena, porque foi um desperdício – numa fase de negação. Perdi muitas coisas, e podia agora até estar melhor fisicamente, porque estive muitos anos sem querer ir ao médico, sem fazer fisioterapia… Sou muito latino nisto: ou tudo ou nada. Ou sou o melhor ou não presto para nada. E passei muito tempo em negação: se era assim, mais valia não ser nada.
Não era à espera dum milagre, mas estava à espera que alguma coisa acontecesse que resolvesse o meu problema. Estava fora de questão viver assim. Quando ia para a faculdade em Lisboa, tentava esconder a minha forma de andar, mas, como já andava desengonçado, perguntavam-me o que tinha e eu respondia que tinha sido duma queda ou que era uma outra doença qualquer. Não respondia com nada melhor, mas tinha vergonha de dizer a minha doença porque aquela era a que eu tinha. Como não podia viver sozinho, e para não ter de me expor a embaraços novos, decidi voltar para casa e tirar um ano sem fazer nada. Acabei por fazer a licenciatura em Agronomia em Beja, porque um amigo me pediu transferência.
“Perdi muita coisa por não querer dar o braço a torcer ao que era realmente a minha vida.”
Depois, por me sentir sufocado nesta negação, voltei a Lisboa para tirar o mestrado de Agronomia, onde acabei por pôr tudo em pratos limpos sobre o que era a minha vida. Isto ajudou para que, na minha própria cabeça, as coisas ficassem mais claras.
A partir de certa altura, com a idade, necessidade e inspiração também, e com muita ajuda das pessoas com quem vivo, percebi que mais valia assumir que tinha esta doença e que dava para viver com ela. Apesar de ter muitos altos e baixos nesta minha maneira de olhar para a doença, consigo identificar quando é que mudei de perspetiva. A doença é progressiva, mas esta mudança de perspetiva foi fraturante. Desde aí que tenho vivido mais em paz.
Houve alguma experiência que tenha sido especialmente importante para essa transição?
Sim. Sempre tive educação católica, mas aos 15 anos deixei de ir à catequese, os grupos que tinha e, mais tarde, até deixei de ir à missa. Isto apesar de reclamar imenso contra Deus, pelo que nunca perdi uma certa ligação: usava-O muito para me zangar. Em todo o caso, o meu crescimento na fé ficou hibernado até um dia em que dois amigos me levaram à missa no CUPAV (Centro Universitário Padre António Vieira). Foi naquele dia que «descongelei a coisa». Ainda com muitas reticências, e com muito orgulho e a minha autossuficiência a comandar, mas foi naquele dia que comecei a querer aproximar-me de Deus e em que aconteceu o clique do lutar para o aceitar. E isso transforma a relação com os outros à nossa volta. Aquele foi dos momentos mais importantes da minha vida. Já acreditava, mas queria provas daquilo em que acreditava, precisava de desfazer as barreiras todas até que me decidi entregar.
Disseste que descobriste a doença e que tiveste uma fase de negação, de raiva e de revolta com a vida, com a doença e com Deus, e que, uns anos mais tarde, sem que a vida, a doença e Deus tenham mudado, mudaste a tua maneira de encarar a vida, passaste a aceitar, sem ser conformista. O que aconteceu?
O que mudou foi que o Espírito Santo me iluminou. Provavelmente já me tocava há imenso tempo, mas eu não O queria ouvir. Talvez por chegar a um bater no fundo, a um instante em que já não era mesmo possível viver assim, comecei a abrir-me um bocadinho ao que Ele me estava a impelir a ver, ouvir e fazer. Acho que foi isso que fez com que eu tivesse ido à missa naquele dia no CUPAV. Não foi só ser levado pelos meus amigos, foi também o eu querer ter ido. Portanto, acho que Deus pôs qualquer coisa dentro de mim, como tem feito tantas vezes ao longo da minha vida. Mesmo quando eu não percebo nada do que está a acontecer, vai-me levando pela mão e guiando por um caminho. Provavelmente Ele achou que já chegava desta miséria: que precisava de mim para alguma coisa e que me queria (e quer) feliz, ou, pelo menos, que queria que eu soubesse que sou amado por Ele. Não tenho grande dúvida que foi pela mão Dele que se deu essa passagem.
Os sonhos: conciliar o realismo e o infinito
Como olhas agora para a tua doença?
Agora já não é possível esconder nada. Ou fico fechado ou não há hipótese. Tem que ser, tem que ser. E a partir do momento em que “tem de ser”, é mais fácil. Houve uma altura em que ainda dava para disfarçar, agora já não, por isso, a própria doença obriga-me a olhar para ela e a conviver com ela duma maneira diferente. Interiorizei muito e já é natural para mim aceitar o que é, apesar de ter momentos em que quero fazer braço de ferro com a vida. Com a doença não… Pode parecer um bocadinho duro, dito assim, mas já não tenho esperança no tal milagre. Faço uns tratamentos, mas já não vejo a cura no horizonte temporal da minha vida. Isso também ajudou. Falsas esperanças é para pôr de lado. Ser realista ajuda imenso. Menos que antes, mas ainda caio no erro de por vezes fazer sonhos irrealistas: começo a pensar no futuro – «vou fazer isto e aquilo…» Apesar de ser bom sonhar, tem de se sonhar coisas que Deus também sonhe para nós, se não vale pouco a pena. Às vezes, ainda tenho ideias de querer fazer a vida à minha maneira, pela minha cabeça, construir o futuro pela minha vontade. Pelo contrário, tenho de aprender a pacificar-me com o que tenho e aprender a viver com o que tenho. E isso é difícil, acho eu. Para todos nós.
“Nós queremos sempre mais, o que quer que tenhamos ou sejamos, queremos sempre mais e melhor.”
A relação com os outros: do fechamento à libertação
O que é que essa passagem do lutar para o aceitar alterou na tua vida concreta e na vida dos outros à tua volta?
Passei a fazer muito mais coisas e até a ter uma vida material e fisicamente mais fácil. Só o pedir ajuda a uma pessoa sem ter vergonha facilita imenso a vida. Lembro-me de, um dia, ter caído no meio da rua a vir da escola e alguém me ter ido ajudar. Eu estava com tanta vergonha, que fui rude com a pessoa que me foi ajudar. Como um miúdo que cai e chora muito mais quando estão visitas em casa, do que quando está só a mãe a ver. E a partir do momento em que está tudo bem, aceito que caí e que agora é «ajudem-me a levantar». Houve uma diminuição da tensão com os outros. Se bem que ainda sou muitas vezes bruto e rude, especialmente com aqueles que estão mais próximos – porque, quando há algum problema, é sobre esses que descarregamos.
O viajar com amigos é também um reflexo dessa libertação. Há uns anos, se calhar não o faria, para não me expor, para sair daquela redoma e imagem que eu tinha de mim próprio. Foi uma grande libertação de facto e foi possível graças à doença. A verdade é essa. Apesar de ser uma carga de trabalhos todos os dias para mim e de às vezes resmungar – «não me apetece mais» – a verdade é que é assim, e a doença há de servir para alguma coisa.
“A sua evolução para um ponto em que deixou de ser possível esconder foi uma grande libertação.”
Como é que os teus pais e o teu irmão lidaram e lidam com a tua doença?
Hoje em dia não é nada de novo, não choca. Para os meus pais e para o meu irmão há de ter sido pior do que para mim, porque, apesar de não ser pai, imagino que, sendo pai, preferiria que uma coisa grave acontecesse a mim do que aos meus filhos. Com certeza os deve assustar pensarem no meu futuro e como é que vai ser a minha vida. Qualquer pai (uns mais do que outros) pensa uma vida para os seus filhos, não tanto como vai ser e os passos que vão dar, mas que vai ser boa. Ninguém projeta uma vida má, difícil e dolorosa para um filho. E isso certamente foi duro para os meus pais e é-o ainda hoje. Mas faz parte das nossas vidas, vivemos com isto e vamo-nos adaptando.
E os teus amigos?
Fomo-nos simplesmente adaptando. Eles foram aprendendo como é que têm que me levantar e baixar.
Ias muitas vezes sair à noite para os Santos em Lisboa…
Sim, os meus amigos carregavam-me pelas escadas da Bica. Onde não cabia um palito, abriam alas para me deixar passar com a cadeira. Nunca deixei de fazer nada – fazer nada não, deixo de fazer muita coisa como é óbvio, há coisas que gostava de fazer e não faço – mas assim deixar de ir a algum sítio porque preciso de alguém e não há ninguém que me ajude, isso não, não me lembro de ter acontecido. Só se eventualmente quero ir a algum sítio sozinho... Às vezes, os meus amigos também estão fartos que lhes peça «faz-me isto» ou «traz-me aquilo» e já respondem «eh pá…» (risos). Às vezes estão fartos, o que é normal, porque eu também sou chato. É uma chatice normal e natural. Nunca senti que precisasse e não estivesse lá ninguém para me ajudar, nunca tive isso, graças a Deus.
E, mesmo sem falar,
“sempre senti que a dor estava distribuída por todos.”
Lembro-me de uma vez um amigo meu ter dito «porque é que não podemos distribuir a tua doença por todos?». Um outro amigo, um dia, estava no carro com os pais, e viram a passar a estrada uma pessoa com um problema do mesmo género do meu, mas já mais limitada. A mãe disse-lhe «aquela pessoa deve ter a mesma doença do António» e o meu amigo começou a chorar. Por isso, sempre senti que estava mais ou menos bem distribuído. (pausa) Mas, claro, isto cabe-me é a mim. No dia-a-dia, eu é que tenho de conviver com isto… Eu, os meus pais, o meu irmão e quem está mais perto de mim.
Viver a dor: a partilha na companhia e a decisão na solidão
Dizes que tens pessoas à tua volta que partilham da tua dor, mas que, no final, és tu que vives isto…
Se calhar estou a ser injusto porque não sei quantificar o que os outros sofrem por mim... Acho que não estou a ser injusto, mas posso parecer cruel. Mas não é isso que eu quero ou sinto. Uma vez conheci uma senhora na Sertã, na Missão País, que estava acamada há 40 anos, sem pernas e sem braços. Tinha muitos santinhos presos ao teto, e ria-se e dizia que tudo o que dali vinha era graça. Diante daquela senhora, parecia fácil estar acamado 40 anos sem braços e sem pernas. Mas eu não conseguia, nem consigo agora, pôr-me na pele dela. Porque eu ando de cadeira de rodas para todo o lado. Vou onde quero, trabalho, saio da cama todos os dias de manhã. Mais: tenho dois amigos tetraplégicos e chegamos a passar fins-de-semana juntos, por isso eu até sei perfeitamente qual é a rotina deles: o que lhes custa tomar banho, vestir, comer, ir à casa de banho, fazer tudo…, eu sei, eu já vi, mas não consigo pôr-me na pele deles, porque eu não passo por aquilo. É neste sentido que eu estava a dizer que é uma coisa minha.
“O sofrimento pode ser distribuído, mas a vida é minha.”
Se bem que a vida dos meus pais é diferente porque eu tenho esta doença. Seria uma vida diferente se eu fosse normal. E, por isso mesmo, também não me consigo pôr na pele deles: no que lhes custa e nos sacrifícios que fazem por minha causa. E isto é verdade, e acho que não é crueldade dizer que não conseguimos meter-nos na pele de outra pessoa. Tal como não dá para nos metermos na pele de uma pessoa que está com uma depressão. Graças a Deus, nunca estive nessa situação. Não consigo imaginar o que seja estar. Percebe-se que a pessoa está triste, está obcecada com alguma coisa. Mas não consigo meter-me na pele dela e sofrer por ela.
Como é que vives esses momentos em que estás sozinho diante da tua dor?
Convivo com a dor, como qualquer pessoa faz. Tento dar-lhe a devida importância, ou seja, não dar importância a mais e continuar. Todos os dias de manhã, temos a decisão de nos levantar ou de ficar na cama. Portanto, passa muito por uma decisão. Tu, eu ou qualquer pessoa somos permeáveis à dor e temos de passar por ela, de uma forma ou doutra, mais ou menos tempo, mais cedo ou mais tarde. Portanto,
“o que cada pessoa faz com a dor é uma decisão.”
E não tem a ver com ser mais fraquinho ou mais forte. Está-me a doer, e o que faço agora? É muito por decisão e ter a esperança e a experiência que a dor existe agora, mas que vai deixar de existir um dia. E que se estou assim agora, amanhã ou mesmo daqui a umas horas, posso estar diferente. É esse raio de esperança, que não sou eu que me dou, é Deus que me dá, que faz com que haja uma luzinha a brilhar ao fundo. Ainda que não a possas agarrar ainda, mesmo que nem sequer sirva para tu saíres da dor, serve para tu, ao menos, tomares a decisão de não deixar passar.
A dependência como um bem: viver uns para os outros
Tens a experiência de olhar para o presente, para quem és agora, e perceber que certas coisas más e dolorosas do passado te fizeram quem és hoje e te deram alguma coisa que tens hoje? E que, por isso, não queres que elas tivessem deixado de ter acontecido?
Sim. Preferia não ter a minha doença (risos). Mas percebo que há coisas que só tenho por causa dela. A experiência de amizade, o fazer experiência e ter a certeza de que os laços fortes entre os homens são possíveis, reais e existem. Sei que há muita gente que morre sem fazer essa experiência e eu tenho vivido esses laços e esses compromissos na minha vida. Foi uma coisa que a minha doença me obrigou a criar, por minha própria necessidade. Necessidade de ter os outros na minha vida. Vejo e compreendo que existe amor entre as pessoas, que há pessoas que se dedicam umas às outras, e que é possível vivermos uns para os outros. Isto é uma coisa que se andasse de um lado para o outro, pelo mundo fora, de saco de botas na mão, a montar a cavalo, não tinha aprendido, ou teria uma percepção diferente. Esta minha fragilidade tem-me obrigado a perceber e a dizer convictamente, sem estar a mentir, que
“as pessoas são boas umas para as outras e que vivem umas pelas outras.”
Sabes que és, para nós e para muita gente, uma verdadeira luz, que és luz para os outros?
Eu sou muito egoísta, e por isso olho muito para dentro. E isto é verdade, não é falsa humildade. Por esse motivo, o meu mundo é muito aquilo que eu estou a sentir a cada altura. Sei isso, porque já várias pessoas me disseram e eu acredito nas pessoas. Mas eu não sinto muito que seja. Só por mim, não consigo identificar isso, porque tendo muito a centrar-me nos meus próprios pensamentos, nos meus sentimentos. Faço mal a muita gente, magoo imensa gente. Não é por andar de cadeira de rodas que deixo de magoar. Com certeza a minha vida pode ter certas particularidades que podem servir de exemplo para momentos da vida de alguém. Mas isso todos temos. Tu também tens, o João também tem, a Leonor também tem, todos temos. É mesmo assim: por isso é que andamos cá todos juntos.
8 de janeiro de 2022
Entrevista: João Serra, Jorge Morais, Mª Gabriela Teixeira Duarte
Redação: Mª Gabriela Teixeira Duarte