Vida

Uma benção escondida

Piedade Ramalho Líbano Monteiro tem 60 anos, está casada há 34 e tem dois filhos: a Maria e o Nuno. O Nuno nasceu com uma perturbação do espetro do autismo. Como resposta a este desafio inesperado, Piedade, que tinha formação em Turismo, decidiu dedicar-se a um novo mundo. Hoje, trabalha na Associação Portuguesa de Síndrome de Asperger (APSA), associação da qual foi co-fundadora.

ENTREVISTA

Lidar com o inesperado

A síndrome de Asperger é a forma mais leve de autismo. O DSM-5 classifica-a como autismo nível 1. As pessoas com esta síndrome são verbais e não têm défice cognitivo. No entanto, há três áreas que são afetadas pela síndrome de Asperger: comportamento, comunicação e interação social.

Como foi receber a notícia de que o seu filho tem síndrome de Asperger?

Foi um longo processo de aceitação. É duríssimo ser-se mãe e ouvir, “Este miúdo?! Isto é irremediável para a vida toda, arranje-lhe lá um cartão do hospital que ele vai aqui permanecer”, ao que eu respondi, “Ah é!? Então espera que vais ver o mau feitio da Piedade Ramalho.” (Ri.)

Este “aceitar” da deficiência do Nuno e do seu problema foi dorido, porque eu gritava ao meu pediatra que o Nuno era diferente e ele achava que eu estava maluca. Por isso, quando o diagnóstico do Nuno chegou, fiquei com “mixed feelings”.

Por um lado, fiquei devastada com a confirmação daquilo que eu já suspeitava, mas ao mesmo tempo deu-me uma força incrível em termos de intuição de mãe. Ao início foi uma aceitação triste, mas acabou por ser um alívio, porque a partir daí foi só arregaçar as mangas. Deu-me uma perspetiva e uma sensibilidade diferentes, deu-me a necessidade de me reduzir ao zero e de entender o Nuno. Isto é a maior prova de amor incondicional pela qual todos os pais têm de passar, mas que nos dá uma visão da vida de beleza.

“Isto é a maior prova de amor incondicional pela qual todos os pais têm de passar, mas que nos dá uma visão da vida de beleza.”

E que conselhos deixa aos pais que estejam na mesma situação?

É preciso ter muito respeito e muito amor para não haver conflito. Nestas situações é o sacramento do matrimónio, ou seja, o casal e o seu amor que são testados. Ou nos une ou nos separa e, se é para nos separar, então que nos separe logo. Na altura, o meu marido e eu discordámos em muitas coisas, ainda hoje isso acontece, mas o trabalho em equipa é essencial.

Por outro lado, não é possível educar um filho assim sem haver honestidade total. A minha filha Maria foi altamente sobrecarregada com o problema do Nuno. Se eu voltasse atrás, agia diferente com a Maria. Quando ela era pequena, eu projectei nela muitas coisas que queria do Nuno. Eu Piedade, eu mãe. Isso dói-me horrores. E a Maria uma vez disse-me: “Eu amo e odeio o meu irmão”, “Ó filha! Tu não me digas uma coisa dessas, um irmão é para amar”, “Não não! A mãe dá todo o tempo que tem ao Nuno. E eu? O que é que sobra para mim?” Eu disse: “Maria não é bem assim. A mãe não falta à tua escola, a mãe está na associação de pais, a mãe isto, a mãe aquilo”. Falei e falei, mas ela respondeu: “Não, não mãe! Estou a falar do seu tempo”. E eu percebi. Estava a falar da minha atenção direta. Foi uma grande machadada, mas eu expliquei-lhe: “Olha, é assim, realmente tu ocupas uma pequena porção da minha paciência e o Nuno tudo o resto. Isto é o que eu tenho para te dar e o que Deus nos meteu no caminho.” Ela emocionou-se e a coisa passou. Hoje ela sente essa responsabilidade, porque quando eu saio, ela é trinta vezes mais preocupada do que eu com o Nuno. Toda a harmonia que sempre vivemos na nossa família só existiu porque a verdade veio sempre ao de cima, mesmo nestas alturas mais críticas. Nunca escondemos que o nosso filho Nuno tinha um problema.

“Toda a harmonia que sempre vivemos na nossa família só existiu porque a verdade veio sempre ao de cima, mesmo nestas alturas mais críticas.”

Que outros fatores foram essenciais para responder a este desafio?

A envolvência da família é muito importante e foi uma grande ajuda neste percurso, pois colocou toda a gente a trabalhar para o mesmo objectivo que era a educação do Nuno. Eu tinha reuniões de três em três meses com os profissionais que acompanhavam o Nuno. O conteúdo destas reuniões, com os objectivos cumpridos e por alcançar, era partilhado com a família alargada, o que deu um envolvimento à família absolutamente fantástico. Se o Nuno hoje sabe fazer coisas do dia-a-dia, tal como apertar botões ou ir à casa de banho sozinho é dado aos primos. Isto é funcionalidade e é fazer dele um igual. Hoje, o meu marido e eu, não nos sentimos sozinhos, porque sabemos que temos uma família que entende o Nuno e da qual ele é parte integrante.

De que forma o Nuno influenciou a sua vida espiritual?

Algo que me tem ajudado muito é a minha fé. Não o posso negar, para mim a fé é uma coisa que não se explica, sente-se e eu sempre a senti no meu caminho. No entanto, também confesso que Deus Nosso Senhor tira muitas férias cá para este lado (Ri.). Eu não vou dizer que o meu filho é uma bênção porque me vão chamar beata. Se nós queremos testemunhar a fé não podemos ir por esse caminho. Talvez seja uma bênção um bocadinho pesada, mas de facto a minha vida não teria o valor que tem se não tivesse o meu filho Nuno.

“a minha vida não teria o valor que tem se não tivesse o meu filho Nuno.”

Não há dúvidas que eu seria um zero de religião se não fosse o Nuno, ele sempre me deu muitos sinais. Por exemplo, o Nuno mexia-se imenso quando eu estava grávida e lembro-me que, quando cantavam o Avé Maria de Fátima na igreja, o Nuno parava. O Nuno adora a Igreja e é super ativo. Quando o fui buscar pela enésima vez à igreja de Paço de Arcos, zanguei-me com ele porque eu encaro o Nuno como um filho igualzinho aos outros, tenho é mais trabalho para o educar e explicar as coisas. Disse-lhe: “Olha, a mãe está cansada, tu que gostas tanto da família, diz-me por favor, onde é que está a família na tua vida se passas o tempo na paróquia de Paço de Arcos?”, ele virou-se para mim com um ar perplexo e respondeu: “Ó mãe, é na igreja que eu estou mais perto de Deus.”, e eu fui para casa caladinha.

Piedade e a sua família

E ao nível da sua vida profissional?

Eu deixei de trabalhar em turismo com muita pena minha. Fui das primeiras voluntárias do CADIn (Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil) com o Nuno Lobo Antunes e, a partir daí, a minha vida teve uma direção completamente diferente. Comecei a integrar este terceiro sector e a trabalhar naquilo que é a saúde e a educação, muito perto das tutelas, o dia-a-dia, o apoio aos pais destas crianças, principalmente com a perturbação do espetro do autismo. E a minha vida tem sido isto.

Da família para o mundo

A APSA tem por missão sensibilizar, desdramatizar e explicar o que é a síndrome de Asperger, capacitando os jovens pelos quais é responsável. Para além de acolher os pais e fazer a triagem de informação, a APSA também trabalha nas escolas, porque os professores não têm formação para os problemas de desenvolvimento que existem.

Qual foi a motivação para fundar a APSA?

Esta aceitação, este caminho e esta visão deram-me a responsabilidade de ter de fazer algo para os outros. Se isto ficasse fechado em mim e na minha família não tinha valor nenhum. A vida não tem sentido se não for vivida para o outro. Portanto, o Nuno foi o mote para eu poder dizer aos outros pais: “Espera! Isto não é um drama, vamos lá ao trabalho.” O que está feito aqui (APSA) foi tudo aquilo que eu não tive, mas que tenho obrigação moral, cívica e pelo meu filho de fazer.

“O que está feito aqui (APSA) foi tudo aquilo que eu não tive, mas que tenho obrigação moral, cívica e pelo meu filho de fazer.”

Existe um novo projecto da APSA que se chama “Casa Grande”, fale-nos um pouco dele.

A Casa Grande é uma resposta social única em Portugal na especificidade da síndrome de Asperger. É um princípio e não um fim.

A Casa Grande nasce porque nós detetámos que existia um fosso entre o fim da escolaridade e o início da vida ativa. Os jovens não conseguiam passar numa entrevista de emprego, por exemplo. Tem de haver um serviço intermediário que faça a ponte entre o jovem e a entidade que o recebe. Caso contrário, este jovem vai para casa e não sai de lá, cria vícios que são difíceis de controlar, torna-se um inconveniente até na família, entra em depressão e acaba medicado. O que nós fizemos foi detectar esta lacuna e arranjar um espaço dedicado ao treino (a partir dos 16 anos) de competência social e funcional juntamente com a família e, no fundo, permitir que estes jovens tenham um caminho depois de terminada a escolaridade. Também é preciso trabalhar a empresa: fazemos uma sessão de sensibilização com a chefia e vemos onde é que há um “match” entre as necessidades da empresa e aquilo que este jovem consegue fazer, quer fazer e é bom a fazer.

Os jovens entram aqui sem destino e nós dizemos-lhes que são os arquitetos do seu próprio futuro, mas têm de ter alguém que os conduza. Esta casa é o princípio da vida de muitas pessoas com síndrome de Asperger e das suas famílias, esta é a casa da Esperança.

“Esta casa é o princípio da vida de muitas pessoas com síndrome de Asperger e das suas famílias, esta é a casa da Esperança.”

O sucesso também está no caminho

Quando abrimos a casa no dia 6 de janeiro de 2014, seis jovens entraram aqui absolutamente sem vida. Um destes jovens estava pelo menos há dois anos e meio em casa sem trabalhar, por isso veio com um ar já muito desleixado. Começou a ser trabalhado por uma técnica que ficou com o processo individual dele. Primeiro nas necessidades, depois nas capacidades e finalmente na pretensão daquilo que ele queria fazer. Este jovem deu o primeiro passo na empregabilidade, fazendo voluntariado na REN. O primeiro desafio foi ensiná-lo a ir sozinho até ao local de trabalho. O passo seguinte foi integrá-lo na sua equipa de trabalho. Essa fase do acompanhamento acabou quando essa técnica chegou uma vez e, estando à espera dele à porta, o porteiro disse: “É para acompanhar o menino? Ah o menino já subiu”. Este rapaz não teve contrato na REN, porque a REN só o faz por concurso público. Não ficou, mas aprendeu. Aprendeu imenso, inclusive a fazer amigos e ainda hoje tem amigos que vão com ele fazer observação de pássaros. Os colegas da REN foram os que produziram mais e os que foram mais humanos enquanto ele lá esteve. Isto  também é sucesso. Não houve contrato de trabalho, mas não tinha de haver, o caminho estava feito. Depois foi fazer uma formação no Santander e hoje está empregado. Pertence aos quadros do Santander e está a tirar a carta de condução. É um rapaz autónomo e contente com a vida.

A mudança não tem de ser grande para ser profunda

Outra história que posso contar é de um rapaz, cujo pai, cerca de um mês depois de o filho estar connosco, veio aqui agradecer-me, dizendo: “Eu não sei o que é que fizeram com o meu filho, mas até os vizinhos notam que ele está diferente, bem hajam!”, e desatou a chorar. Isto serve para entender a sensibilidade do trabalho que pode ser feito com estas pessoas. É impossível quantificar o impacto directo e indirecto que estes dois jovens que vos falei incutem na sociedade. Eu não tenho um número, desculpem, mas não estamos a falar de números. Hoje, esse rapaz está empregado no Pingo Doce e teve alta da Casa Grande.

A sensibilidade como crescimento

Uma outra história é sobre um jovem que é extraordinariamente competente, mas socialmente complicado e bastante agressivo. Todos os anos fazemos a festa de verão da APSA, com as famílias e os profissionais. Numa destas festas ele sentou-se a tocar flauta. E eu olhei para os pais e estavam a chorar. Perguntei o que se passava e a mãe respondeu perplexa: “Eu nem sabia que o meu filho tinha jeito para a música… Mas isto não é o meu filho!”, e eu disse-lhe: “É é! Este é que é o seu filho!”. Hoje em dia, trabalha na PLMJ a fazer digitalização de documentos. São histórias que para o padrão não são de um sucesso fantástico, mas para mim são de um sucesso absolutamente incalculável, porque não é pelos números que nós lá vamos.

Em jeito de despedida, quer deixar uma última mensagem?

Estamos inteiros neste trabalho de sensibilização para a diversidade. A APSA está aqui para o que for preciso. Ter um filho que sai um bocadinho do padrão e ter alguns obstáculos a superar, será isto que faz a nossa infelicidade? A vida tem valor enquanto nos dermos aos outros!

“A vida tem valor enquanto nos dermos aos outros!”

28 de março de 2022

Entrevista: João Serra, Jorge Morais

Redação: Tiago Rocha e Mello

Entrevista

Quem é a Piedade?

O que é a Síndrome de Asperger?

Como reagiram ao diagnóstico?

Qual a importância da família?

Como foi educar o Nuno?

O que faz a APSA?

Que dados existem?

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