Vida

Encontrar-me no outro

Madalena Pombeiro tem 21 anos, vive em Barro Branco, perto de Borba, com os pais e com o irmão mais velho. De momento, está a tirar o curso de Teatro na Universidade de Évora. Já nos tempos de escola gostava de ter aulas de teatro, fazendo mesmo parte de um grupo. Sempre pensou que seria um hobby a manter e, depois de um tempo em que parecia nem isso ser possível, hoje quer mesmo fazer carreira.

ENTREVISTA

Um olhar renovado sobre a vida

Muitas vezes associamos à vida fora das grandes cidades a ideia de uma rotina sem grande interesse, onde não há muitas novidades. Fala-nos um pouco sobre a tua infância.

Quando era mais nova, lembro-me de dar algumas dores de cabeça aos meus pais, nunca parava quieta, nem um bocadinho. Estava sempre a cantar e a correr, caía muitas vezes e chegava a casa toda escalavrada. Costumava brincar na rua com as outras crianças, juntávamo-nos sempre no parque ou, no Verão, junto das piscinas.

Fazia muito desporto: natação, futsal, futebol, patinagem, andebol, vólei, basquetebol.

Não trocava a vida no campo por nada. Poder acordar todas as manhãs com os passarinhos e não com o vizinho de cima a fazer barulho, ver só verde e animais à minha volta… Não trocava isto por nada! Eu acho que a rotina existe em todo o lado. Depende da maneira como olhamos para as coisas e nos predispomos a acolher tudo como novidade, sempre como algo novo.

“Eu acho que a rotina existe em todo o lado. Depende da maneira como olhamos para as coisas e nos predispomos a acolher tudo como novidade, sempre como algo novo.”

Por exemplo, aqui aprendemos a distinguir o barulho dos pássaros, a reparar se uma árvore está mais despida do que outra, a olhar para as coisas mais pequenas e para os mais ínfimos pormenores.

Sempre vivi no campo, só vivi na cidade quando estive internada em hospitais. Estive em Lisboa durante um ano, também estive algum tempo em Évora e depois em Madrid.

O que se passou na tua vida para que tivesses de passar algum tempo internada em hospitais?

Não sabemos bem a causa… Aos treze anos, para evitar ser pisada a dançar folclore, torci o pé e fiz uma rotura de ligamentos. Depois, comecei a ter sintomas estranhos, o meu pé e a minha perna incharam para o dobro do tamanho e deixei de ter mobilidade na perna. Inicialmente começámos a andar em hospitais porque pensava-se que fosse uma tromboflebite, mas não era. Em seguida, começou a passar para o braço e daí para a outra perna, perdi a mobilidade completa. Neste processo, tive de andar em vários hospitais a fazer muitos exames e testes para se perceber o que era. Hoje sabemos que tenho síndrome de dor regional complexa, transtorno neurológico funcional do movimento e síndrome de Fowler, além de tudo o que estas coisas acarretam.

Ainda não se sabe bem o que deve ser feito. De momento, estou a fazer terapias intensivas, fisioterapia e, quando consigo, terapia ocupacional. Já experimentei vários planos de medicação, mas infelizmente não resultaram. No entanto, sempre que aparece um novo problema, procuramos atuar sobre ele.

É necessário reconhecer o que nos rodeia

Como é que uma rapariga de treze anos encara a doença e as mudanças de vida causadas pela doença?

Numa fase inicial, sobretudo na adolescência, foi muito difícil largar tudo o que queria de repente. Na altura pensava seguir desporto e tive de largar esse sonho de um momento para o outro. Tudo aquilo que conhecia, amizades e rotinas, tudo muda. As saídas à noite transformam-se em idas ao hospital e às urgências, as gomas e pastilhas elásticas passam a ser medicamentos. É complicado para qualquer pessoa, quanto mais naquela idade….

“As saídas à noite transformam-se em idas ao hospital e às urgências, as gomas e pastilhas elásticas passam a ser medicamentos. É complicado para qualquer pessoa, quanto mais naquela idade….”

Só mais tarde, quando as coisas começaram a estabilizar, é que pude voltar a estar com o meu núcleo de amigos, a sair à noite e a fazer teatro. Já o desporto foi, e ainda é, muito complicado. Não há muitos sítios aqui onde pessoas com mobilidade reduzida consigam fazer desporto.

A minha família foi claramente uma parte muito importante, sem eles não estaria aqui e não seria o que sou hoje. Perdi muitos amigos devido aos problemas de saúde, mas felizmente tive uma amiga que nunca me abandonou. Deus esteve sempre comigo. Mesmo quando eu não estava, Ele estava, hoje consigo ver isso. A Missão País mudou-me.

Também me marcaram muitas das pessoas que conheci nos hospitais, desde os mais novos aos mais velhos. Dentro daquilo que podíamos chamar azar, tive muita sorte.

“Dentro daquilo que podíamos chamar azar, tive muita sorte.”

Em situações difíceis, nós dependemos muito das pessoas que estão ao nosso lado. Nos dias em que eu estava contra tudo e contra todos, e só dizia disparates, essas pessoas ajudaram-me muito a lembrar quem eu realmente era.

Como foi para ti reconhecer a necessidade de ajuda? E do outro lado, como respondeu a tua família perante estas novas necessidades?

Ainda hoje não é fácil aceitar que sou dependente para fazer grande parte das coisas. Custa-me muito ter de pedir para ser levada para todo o lado, para fazer quase tudo. É complicado ver-me aos 21 anos a precisar assim de ajuda. Sem a minha família, não sei como seria…

“É complicado ver-me aos 21 anos a precisar assim de ajuda. Sem a minha família, não sei como seria…”

Eles estão sempre lá com um sorriso na cara e com palavras de apoio “não te preocupes, não peças desculpa, estamos aqui é para isso”. Se não fossem eles, a sua presença que nunca falha, as suas palavras e os seus sorrisos, não sei como seria, não sei onde estaria.

A transformação que leva à ação

Entre internamentos e tratamentos, houve espaço para momentos de alegria?

Sim. Quando estava internada, lembro-me muito bem das visitas dos Doutores Palhaços às terças à tarde. Pode parecer que não fazem muito, mas eles fazem tudo: levam alegria a um espaço onde ela não há. Podemos até pensar que aquelas brincadeiras são coisas de crianças, mas depois ficamos com um sorriso igual ou maior ao dos mais pequenos.

Outro momento de grande alegria foi quando recebi a minha cadelinha nos meus anos depois de um dos maiores internamentos que tive, seis meses e meio. Ela está sempre ao pé de mim, recebê-la num momento tão difícil foi mesmo muito bom.

 

Queres falar-nos sobre o projeto dos peluches nos hospitais e nos lares?

É um projeto que já se faz noutros países, mas não em Portugal. Consiste em transformar um peluche para se adequar às circunstâncias em que se encontra a pessoa e nas quais vive. Desta forma, deixas de ultrapassar os problemas sozinho, tens “alguém” que está a passar pelo mesmo que tu. Por exemplo, se uma criança tiver de aprender a cuidar dos seus dispositivos médicos, ela pode primeiro aprender a cuidar dos dispositivos do seu boneco e depois torna-se mais fácil a sua própria aprendizagem.

Uma das razões que me motivou a participar neste projeto foi ter reparado na dificuldade que as crianças sentem ao serem sujeitas a procedimentos médicos, como um acesso intravenoso, ou a terem de utilizar uma máscara de oxigénio ou um tubo de alimentação. Estes procedimentos podem criar alguma frustração nas crianças porque sentem que deixam de ser quem eram. Ter um amiguinho, neste caso um peluche, “igual” a elas ajuda a dar uma outra perspetiva, à semelhança daquele “ver-se de fora” que falámos há pouco.

 

De que modo é que as crianças deixam de ser quem eram?

Imagina que és uma criança. Tudo o que tu fazias e, mesmo quando olhavas ao espelho para te ver a ti próprio, tudo isso acaba. De repente, começas a ter dispositivos médicos, deixas de brincar com os teus amigos e passas a estar numa cama de hospital. Isto abala o mundo de qualquer criança. De certa forma, ela deixa de ser criança, é obrigada a crescer muito depressa porque vê coisas que mais nenhuma criança vê no dia-a-dia.

 

E agora, o que estás a fazer?

Neste momento, estou a tirar o curso de teatro na Universidade de Évora, no Polo dos Leões. Eu sinto-me sempre uma leoa, temos de ser feras de palco para estar neste mundo. O leão é um animal forte, mas também tem um lado meigo e compassivo para com a sua espécie. É assim que temos de ser em palco. No meu caso, sinto-me poderosa, sinto-me com força e, ao mesmo tempo, tenho o meu grupo, a minha família, que são as pessoas em palco comigo.

A verdadeira alegria brota de nos darmos aos outros e de os acolhermos

Achas que essa experiência da alegria num sítio onde ela parece faltar pode ser uma das motivações para a tua paixão pelo teatro?

Eu quero muito poder um dia dar aos outros a mesma alegria que os Doutores Palhaços me deram. As emoções que eles me transmitiram e o quanto me ajudaram a viver aqueles momentos fizeram-me perceber que era também aquilo que eu queria passar aos outros.

“Eu quero muito poder um dia dar aos outros a mesma alegria que os Doutores Palhaços me deram. As emoções que eles me transmitiram e o quanto me ajudaram a viver aqueles momentos fizeram-me perceber que era também aquilo que eu queria passar aos outros.”

Onde quer que estejamos, e quaisquer que sejam os nossos problemas, o teatro ajuda-nos a “esquecer” a doença e a concentramo-nos para viver aquilo que nos estão a mostrar.

Todas as personagens me ajudaram. Podemos estar a ter um dia mesmo mau e, no momento em que vamos para o ensaio ou para o dia da peça, tudo desaparece. Quando entramos numa personagem tornamo-nos numa nova pessoa com novas experiências e vivências, já não somos totalmente nós próprios. Experienciamos uma forma completamente diferente de lidar com determinadas situações, porque é isso que a personagem pede. Depois, quando voltamos a nós próprios, pode acontecer que percebamos que há uma forma melhor de resolver os nossos problemas. Já não é apenas aquele o único caminho, de repente apresentam-se outras possibilidades.

Por exemplo, uma vez participei na peça da Antígona. Nesta peça, quando o príncipe morre, o Rei não o quer enterrar por não o achar merecedor disso. Uma das suas irmãs, Antígona, quer honrar a sua morte e prestar-lhe homenagem, apesar de lhe ser proibido. Neste processo, ela é descoberta, castigada e acaba por morrer. Eu fazia de escrava e, nessa altura, sentia-me literalmente uma escrava da vida, estava a ser uma altura complicada com várias infeções e ia ter uma cirurgia logo após a peça, e eu não estava a conseguir lidar com a situação. Não conseguia sair de mim mesma, do meu casulo. O ser escrava, ver e viver tudo aquilo que ela viveu, ajudou-me depois quando voltei para mim. Consegui perceber que ia passar este sofrimento para depois poder estar bem. Eu não podia saber qual seria o desfecho, mas acreditei. Nós nunca sabemos qual vai ser o desfecho, mas acreditamos, temos de o fazer. Caso contrário, entramos numa espiral de desespero.

“Nós nunca sabemos qual vai ser o desfecho, mas acreditamos, temos de o fazer. Caso contrário, entramos numa espiral de desespero.”

Existe algo em concreto que te dê essa esperança de olhar para o sofrimento com a certeza de que algo melhor está reservado no futuro?

No início da minha doença estava miserável, não sabia o que iria acontecer e não tinha nada de concreto a que me agarrar. No entanto, a partir daquilo que já vivi, os altos e os baixos, eu sei que as coisas podem sempre melhorar, ou pelo menos, é possível olhar com outros olhos.

“No entanto, a partir daquilo que já vivi, os altos e os baixos, eu sei que as coisas podem sempre melhorar, ou pelo menos, é possível olhar com outros olhos.”

Por vezes, estamos muito mal e achamos que as coisas nunca irão melhorar e, de repente, cai-nos algo em cima, que é uma luz que nos engloba, e nós caminhamos para lá.

 

Atualmente a melhor forma que tens para lidar com o sofrimento diário é o teatro. E antes, como lidavas com isso?

Não é só o teatro, há várias coisas como a minha família e a minha relação com Deus. Sou católica e, desde que me lembro, sempre acreditei. Vou fazer uma comparação um pouco tonta…. É como ter um peluche gigante que podemos abraçar e, mesmo que tenhamos tido o pior dia da nossa vida, sabemos que está ao nosso lado. É assim a minha relação com Deus. Eu sei que Ele está cá, eu sinto-O. Sei que Ele está cá, embora não O veja.

 

No fundo, saberes-te amparada ou confortada por alguém que gosta de ti é uma forma de lidar com os teus momentos mais difíceis?

Sim, também sei que os momentos mais difíceis por vezes não são por acaso. Acredito que me possam estar a preparar para o futuro e, provavelmente, para a vida depois da morte. Quando pedes algo a Deus, por exemplo força, Ele não te dá de mão beijada, dá-te caminhos que tu superas para ganhar essa força. Acredito que o meu caminho seja isto, etapas que me aparecem para eu chegar ao meu destino.

Antes eu vivia muito virada para o meu umbigo, mesmo muito – era o que eu gostava de fazer, o que eu queria ser, tudo eu. Com tudo o que se passou, aprendi a olhar mais à minha volta para as pessoas que me rodeiam.

“Antes eu vivia muito virada para o meu umbigo, mesmo muito – era o que eu gostava de fazer, o que eu queria ser, tudo eu. Com tudo o que se passou, aprendi a olhar mais à minha volta para as pessoas que me rodeiam.”

Passei de olhar para baixo para o meu umbigo para olhar em frente. Deixei de pensar como é que os outros me podem ajudar a mim, mas sim como posso eu ajudar os outros. Apercebi-me que não sou a única pessoa com problemas na vida, todos têm os seus. Felizmente, tive pessoas que me ajudaram a mim, e quero que os outros sintam que também tiveram alguém que os ajude nesse sentido.

Quando era mais nova e me aparecia um problema, a minha reação era logo “não, não quero ir por aí, vou por outro lado”. Entretanto, aprendi a ir por esse caminho. Mesmo que o obstáculo seja grande, provavelmente a recompensa de o ultrapassar é muito maior do que se fosse por um outro caminho sem dificuldades.

28 de março de 2022

Entrevista: João Câmara Serra, Jorge Morais, Mª Gabriela Teixeira Duarte

Redação: Jorge Morais

Entrevista

Apresentação

Como apareceu a doença?

Como foi a descoberta?

Ser dependente

Motivos de alegria

Motivação para o teatro

Transformação com a doença

As crianças deixam de ser quem eram