Vida

Tive o privilégio de ser amada e isso empurrou-me para a frente

Sofia Torre do Valle tem 63 anos, está casada e tem dois filhos. É, desde há vários anos, voluntária na casa das Missionárias da Caridade, em Chelas. Nesta casa, as Irmãs acolhem idosos que não têm para onde ir, seguindo o Carisma da Madre Teresa de Calcutá de servir os mais pobres dos pobres.

ENTREVISTA

Vê lá o que fazes à tua vida…

Houve um momento na sua vida que lhe trocou as voltas. Tinha todo um projeto de vida e esse momento veio alterar tudo. Pode-nos contar?

Foi em 1980, tinha eu 22 anos. Vinha do Algarve com o meu namorado e o meu cunhado e tivemos um acidente de carro. O meu namorado morreu e eu fiquei muito mal. No hospital, fui reanimada e estive em coma oito dias. Depois, estive nos cuidados intensivos durante quatro meses, onde melhorava e piorava, num constante vai e vem. Parti uma perna e as vértebras cervicais 6 e 7 (C6 e C7) da coluna. Também tive colapsos pulmonares que me fizeram continuar nos cuidados intensivos.

O que aconteceu depois de sair dos cuidados intensivos?

Quando em dezembro fui para o quarto, a médica que me tinha assistido durante aqueles meses disse “Vê lá o que fazes à tua vida. Quando te estava a reanimar tive momentos em que me questionei se valeria a pena”.

“Vê lá o que fazes à tua vida. Quando te estava a reanimar tive momentos em que me questionei se valeria a pena”

Acho que a Dra. Cristina foi, sem querer, o motor de arranque para a minha caminhada. Curiosamente, era uma pessoa sem fé. Voltei para casa na véspera de Natal. Não era capaz de levar uma colher de sopa à boca. A casa teve de ser adaptada, com cama articulada, mas tenho uma família grande que foi fantástica. Eu sou a quarta de oito irmãos. A minha mãe e as minhas irmãs foram de uma dedicação e de um amor enormes. De facto, Nosso Senhor pede-nos com uma mão, mas dá-nos o dobro com a outra. Tive muito. Houve muito amor à minha volta. 

Fui melhorando e comecei a andar ao fim de dois anos. Até fazer 30, estive sempre em recuperação. Nesta altura, conheci o Nuno, o meu marido. Casámos ao fim de nove meses e, desde aí, temos caminhado a par. Tem sido muito bom. Também tivemos dificuldades, nomeadamente nas gravidezes. Com o Tomás, estive mês e meio em Santa Maria antes do parto, com uma pré-eclâmpsia. Com a Maria do Carmo, estive três semanas na Alfredo da Costa, com uma pré-eclâmpsia grave. Ela nasceu com um quilo e meio.

Como é que lidou com o acidente? Tinha todo um projeto de vida…

Lembro-me de rezar e rezar no hospital. Rezar tranquiliza-me porque sinto que Deus me dá a mão. Claro que houve alturas em que me revoltei, chorei, vivi aquele luto, mas também pensei “Nosso Senhor, dá-me uma segunda oportunidade”. Tentei fazer o meu caminho pelo bom lado.

Com esse acidente, não só perdeu todos os seus projetos, como ainda teve de passar por dois anos de recuperação só para voltar a andar. Deve ter sido terrivelmente frustrante.

Sim, é verdade. Mas, por outro lado, tinha um suporte em casa, nos meus pais e nas minhas irmãs. As minhas irmãs levavam-me a sair e não me deixavam entrar no meu sofrimento, na minha tristeza.

“As minhas irmãs levavam-me a sair e não me deixavam entrar no meu sofrimento, na minha tristeza.”

Tinha também imensos amigos e amigas que iam ao hospital.

Como é que a sua família olhava para a situação?

Claro que foi um sofrimento enorme. Eu percebi perfeitamente e, durante muito tempo, senti-me a causa daquela desorganização em minha casa, porque estar um pai e uma mãe num hospital durante quatro meses significa que outros filhos ficam desamparados. A minha irmã mais nova tinha 14 ou 16 anos e sentiu-se um pouco abandonada.

Precisei que olhassem para mim

Como é que olha hoje para o acidente? Que bens e que males lhe trouxe?

O acidente fez de mim uma pessoa melhor. Fez-me avaliar um sorriso da Deolinda, que é uma senhora que vive em casa das Missionárias da Caridade. Estar aqui e ver que bom é este verde. Fez-me pensar que há coisas pequenas que têm muito valor. E fez-me olhar para os outros, porque eu precisei que olhassem para mim. Eu fui sempre muito independente, mas caía muito na rua, e ainda caio, e quem me ajuda mais são as pessoas de idade. É extraordinário. Os mais novos estão sempre a correr e nem se apercebem que uma pessoa caiu. Isto fez-me olhar mais para os outros.

O que fazia para não cair no absurdo dum sofrimento fechado?

Eu acho que era a oração, mesmo sem o perceber. Só mais tarde percebi, com as Missionárias da Caridade, que era o oferecer. Eu nunca deixei de rezar. Lembro-me de estar no hospital na cama a rezar e a pedir as medalhas que estavam no meu fio. Como eu não as podia ter comigo, puseram-nas num lençol ao lado da cama. Oferecendo a Deus, tudo se torna mais fácil. As Irmãs ensinaram-me outra coisa: a oferecer com alegria.

“Oferecendo a Deus, tudo se torna mais fácil. As Irmãs ensinaram-me outra coisa: a oferecer com alegria.”

Como é que chegou a esta situação e começou a rezar? Era alguma coisa que vinha de trás?

Eu em nova estive num grupo de jovens e sempre tive fé. Lembro-me de, no dia do acidente, ter rezado de manhã. Engraçado, não é? Sair da aldeia a rezar, antes da viagem. Eu acho que foi isso a mão de Deus.

Tive uma educação religiosa e sempre tive fé. E acho que foi a fé que me salvou, porque Deus escreve direito por linhas tortas. Uma vez, disseram-me “não era preciso ser tão torta…” mas eu acho que foi isso que me fez ter o Nuno, o Tomás, a Maria do Carmo e, mais tarde, as Missionárias da Caridade.

Mas uma pessoa poderia pensar que, se não tivesse tido o acidente, teria casado com outra pessoa, teria tido outros filhos...

Se calhar não era tão feliz. Eu acho que estas coisas da vida que nos acontecem é Nosso Senhor a pôr-nos à prova para dizer que, apesar de tudo, vale a pena. Vamos para a frente! Não é porque não gosta de nós, pelo contrário. Às vezes pensava: “Porquê?”, mas nunca me senti verdadeiramente abandonada.

“Às vezes pensava: “Porquê?”, mas nunca me senti verdadeiramente abandonada.”

Não sei o que vai ser de mim

Como começou a ir às Missionárias da Caridade?

Houve uma altura em que senti que estava tudo muito vazio e um amigo meu que era lá voluntário desafiou-me a ir com ele. Comecei a ir um dia por semana, depois dois, três… Mais tarde, comecei a ficar cansada. Hoje em dia ajudo na parte administrativa.

Antigamente, de manhã, ajudava as senhoras a arranjarem-se e a fazer as camas, e depois ia lá à missa. Gostava de ir à quinta-feira porque, no final dos trabalhos, ficava em Adoração ao Santíssimo com as Irmãs. À tarde, fazia companhia às senhoras: jogava, conversava e fazíamos uns terços que as Irmãs davam aos seminaristas. 

Foi uma fase muito boa da minha vida, foi uma maneira de aceitar esta minha curva descendente.

O que quer dizer com curva descendente?

Sinto-me a piorar e os médicos dizem “O que é que queres? Já tiveste tanto” e de facto tive tanto. Eles dizem-me que agora não há nada a fazer. Tive uma lesão no cerebelo que é a parte que comanda os músculos e a parte sensorial. Estou a perder forças, apesar de fazer ginástica e fisioterapia todos os dias, o que me mantém. Não sei o que vai ser de mim, mas, pronto, estou aqui. As Irmãs ensinaram-me a aceitar com alegria isto tudo.

O que é que a faz querer continuar a ir às Irmãs? O que vê nas Irmãs e nas pessoas que lá estão?

Começando pelas pessoas que lá estão, penso que o único abraço que esta gente recebe (ou dos poucos) é o meu. Ter tempo para elas é importante. Nas irmãs vejo uma alegria que me faz reconhecer que estou muito longe da fé delas, que sou muito pequenina.

“Nas irmãs vejo uma alegria que me faz reconhecer que estou muito longe da fé delas, que sou muito pequenina.”

Quando as vejo na Adoração a olhar para o Santíssimo, penso que sou tão pequena, tão pequena… Depois vejo a ternura que têm por mim, por cada um de nós. Quando estamos lá muito tempo com elas, acabam por ser um bocadinho nossas, por fazer parte das nossas vidas, da nossa família.

Tive o privilégio de ser amada

O que é que diria ao seu “eu mais novo” que ainda não tivesse encontrado o “para quê” do acidente?

Dizia para não desistir, sabendo que pode demorar tempo e custar. 

No outro dia, lembrei-me que nunca tinha pensado se os meus sobrinhos teriam vergonha de andar comigo. Na Expo 98, sentei-me numa fila para entrar numa exposição e um senhor apontou para mim e para a minha irmã e disse “a senhora que tem dificuldade a andar pode vir comigo”. Eu disse à minha irmã “Oh… mas percebe-se...”. Sentia-me tão integrada no mundo, que não me preocupava com o que os outros pensavam, nem comigo.

“Sentia-me tão integrada no mundo, que não me preocupava com o que os outros pensavam, nem comigo.”

Claro que, na rua, às vezes, as pessoas passam à minha frente e olham para trás, para ver se eu estou bêbeda. Há dias em que não gosto e, então, respiro fundo e encho a barriga.

Mas é não desistir. Foi uma coisa que eu nunca fiz, desistir. Deus está sempre ao nosso lado e vemos isso nos pequenos milagres que acontecem nas Missionárias da Caridade. Nem sei explicar, é Nosso Senhor.

Houve alguma conversa em que os sobrinhos lhe tenham dito que tinham vergonha?

Não, nunca houve. Eu tive muito amor das pessoas à minha volta, todas. Se o terreno é mais irregular, eu vejo o Nuno, o Tomás ou a Maria do Carmo e percebo que estou a ser protegida. Eles não me vão logo agarrar, mas sinto que estou sempre protegida. Sinto-me sempre protegida pelos meus sobrinhos, pelo resto da minha família, pelas pessoas que estão à minha volta.

Como ninguém queria que desistisse, era mais fácil perceber que não era para desistir.

Nunca me senti a fazer uma vida sozinha. Tive o privilégio de ser amada e isso empurrou-me para a frente. É muito importante a cabeça e quem nos rodeia. Eu sinto-me amada e nunca pensei que isso pudesse acontecer depois do que perdi.

4 de abril de 2022

Entrevista: João Câmara Serra, Jorge Morais, Mª Gabriela Teixeira Duarte

Redação: Mª Gabriela Teixeira Duarte