Vida

“Porque me sei profundamente amado”

Introdução:

Afonso Teixeira é um jovem de 28 anos, professor, e, nas palavras do próprio, “com um percurso de vida normal como o de qualquer jovem”. A sua vida é pautada por acontecimentos, projetos, iniciativas que deixam transparecer uma marca comum: uma busca sincera pelo sentido da vida, pelo porquê das coisas; no fundo, descobrir porque aqui estamos e para quem.

ENTREVISTA

I – Queda

Podes contar-nos um pouco do teu percurso profissional?

Ao início tinha interesse em Pedopsiquiatria, mas acabei por me apaixonar por Educação, pela possibilidade de acompanhar jovens no dia-a-dia, de criar relação. Gosto muito de lidar no concreto de cada dia com jovens, com os meus alunos.

Neste momento, trabalho numa escola pública, dou aulas de Matemática e Ciências da Natureza ao quinto e sexto ano. Estou a gostar bastante, mas não deixa de ser desafiante pois é uma escola com uma realidade complicada. Encontro jovens com algumas necessidades afetivas (sempre foi assim, não?), mas neste caso iria até mais longe, sinto que existem ali défices afetivos.

A meio do teu percurso surge uma depressão, que é muitas vezes mal compreendida e pode até ser confundida com um sentimento prolongado de tristeza. Podes contar-nos como foi passar por uma depressão e o que é que isso significa?

Eu comecei a ser acompanhado por volta dos 11 anos e fui diagnosticado com depressão major. Não sei bem qual é a diferença entre depressão e depressão major (não sou psicólogo, nem psiquiatra), mas sei que o segundo deverá ser um estado mais grave. Só catorze anos depois, aos 25, é que deixei de ser medicado. Uns tempos mais tarde, tive de voltar a tomar medicamentos durante dois ou três meses, mas depois parei de vez. Este período corresponde atualmente a metade da minha vida.

Olhando para trás, penso que na altura nem sequer me apercebia bem pelo que estava a passar. Eu disfarçava bem, por isso não costumava parecer ter uma depressão.

O sintoma principal era uma espécie de falta de sentido, mais do que uma tristeza. No meio das outras pessoas, estava tudo tranquilo. Escondia a apatia, a inércia, o não reagir. O problema era quando me encontrava sozinho… Às vezes não é tanto aquela tristeza visível, mas uma anulação da minha vontade. Não decidia, ia um pouco atrás dos outros. Era uma espécie de deixar estar, tanto nos trabalhos da escola e da faculdade, como nos programas com amigos. Por vezes poderia ser para agradar, mas outras era simplesmente para não ter de ser eu a decidir, a assumir a responsabilidade. Era profundamente infeliz por eu próprio não tentar ter um sentido para a minha vida, não saber pôr limites, não saber dizer que não…

Outro aspeto que me marcava bastante era uma grande tendência para comprar coisas exteriores, no fundo tentava comprar a felicidade. Tentava comprar uma falta de valor que sentia, procurava comprar algo que viesse dar o valor que, a meu ver, eu não tinha.

Eu disfarçava bem, por isso não costumava parecer ter uma depressão.

Conciliar esta apatia e inércia com os estudos e os exames não deve ter sido fácil… Como fizeste?

Fugia... Lembro-me que passei os meus 24 anos num local longe e sem rede precisamente para fugir. Para mim tem sido bonita a experiência de reaprender a aproveitar as coisas pequenas, como fazer anos.

Não é que eu goste particularmente de aniversários, mas é uma oportunidade de estar com os meus amigos, com a família, com aqueles que me são importantes.

Em relação aos estudos, às vezes fazia o que tinha para fazer, mas outras vezes simplesmente não fazia, não entregava os trabalhos… Numa primeira fase, era-me fácil pensar e delinear o que era necessário fazer, mas muitas vezes ficava por aí. Como me faltava consistência, o plano não era realizado e acabava por não entregar os trabalhos, ficava tudo muito aquém do que podia fazer… Isto aconteceu mais durante a faculdade, altura em que estive pior.

Acabei também por cair num certo ativismo… Não eram propriamente coisas más, eram interessantes e boas até, mas faziam atrasar aquilo que me era pedido e acabava por negligenciar as minhas obrigações de base. Por exemplo, ia frequentar aulas de outros cursos e pensava “Estou a ver coisas boas e interessantes, não deixo de me estar a formar, de aprender algo novo”, mas depois não entregava os trabalhos das minhas cadeiras. Esticava-me para todo o lado, mas não fazia os mínimos que eram da minha competência. Esta ideia de estar aqui e em todo o lado acabava por ser uma fuga e, por isso, tornava-me miserável.

Para mim tem sido bonita a experiência de reaprender a aproveitar as coisas pequenas, como fazer anos.

Não é contraditório sentires uma grande inércia ao mesmo tempo que estavas num ativismo desenfreado?


É uma boa pergunta, acho que esse é um dos aspetos mais fascinantes da depressão, pelo menos no meu caso. A inércia era relativamente àquilo que me era pedido ou então que era realmente importante para mim e para o meu caminho. O ativismo era com aquelas coisas que me eram prazerosas como ir a outras formações, assistir a debates ou estar com amigos ali e acolá. Isto é, aquelas coisas em que não estou propriamente a fazer caminho, nem a avançar numa direção, onde não sinto pressão e não há possibilidade de falhar. Esta atividade frenética era na mesma inércia, apenas estava mascarada de muita coisa. Muito do caminho que tenho feito é no sentido de perceber que posso fazer na mesma mais coisas para além do meu trabalho, como estudar os meus assuntos de interesse ou ir visitar museus, gozando da paz de ter cumprido as minhas obrigações. Assim posso estar realmente em cada coisa que faço. Mais, ao final do dia, posso ter a paz para fazer o que for sem ser uma fuga. Quando chego a casa já não penso “Ai, não fiz isto” e vou deitar-me a sentir-me mal, a sentir-me angustiado e ansioso. Era isto que acontecia antes quando me apanhava sozinho, não dava para fugir.

Era isto que acontecia antes quando me apanhava sozinho, não dava para fugir.

Durante este período, as pessoas à tua volta apercebiam-se daquilo por que estavas a passar?

Notava-se sim, acho que algumas pessoas notavam. Na escola, em geral os meus colegas não sabiam, a menos que fossem pessoas mais íntimas com quem eu me abria um pouco mais. Penso que os meus pais tinham noção certamente, mas era-lhes difícil. Foi muito difícil para os meus pais, avós, familiares e pessoas próximas, acho que às vezes eu também fui duro… Estava a sofrer, precisava de ajuda e não tinha propriamente forma de dizer “Olha, estou a precisar de ajuda, não me sinto bem”. Independentemente de tudo, é preciso também ter cuidado com uma quase incompreensão para com as outras pessoas que temos à nossa volta. É normal que não percebam, que não saibam. Além disso, essas pessoas estão a lidar com um genuíno sentimento de impotência: “Não há nada que eu possa fazer, não consigo fazer nada que ajude esta pessoa”. Por isso, é importante ter esta compreensão, a compressão que eu exigia tanto para terem comigo, mas que depois acabava por não ter com os outros.

Isto pode ser duro de ouvir para quem tem uma depressão neste momento, mas a depressão também é uma questão de postura, ou de relação, relação comigo e com os outros.

Não estou a dizer que as pessoas com depressão são menos que os outros, nem que são as únicas culpadas. Mas têm responsabilidade: é preciso ter atenção à forma como direcionam as coisas e como pensam, a meu ver.

a depressão também é uma questão de postura, ou de relação, relação comigo e com os outros.

O número de pessoas com depressões tem vindo a aumentar nos últimos anos. Com base na tua experiência, parece-te que é fácil cair numa depressão?

Acho que sim. Olhando para o estado atual da sociedade, percebe-se que o conceito de família está a mudar. Eu vejo isso bastante: crianças com falta de estrutura, com dificuldade de concentração, dificuldade em estar, claramente não estão em paz, falta-lhes algo… Quando vejo isto e olho para a estrutura familiar, vejo falta de afeto, falta de presença, de programa, de conversa. No fundo, falta-lhes saberem-se olhados, saberem-se amados.

Eu tenho uma tendência para estar sozinho e tenho de contrariar às vezes esta propensão para me isolar. Ao reconhecer noutras pessoas esta “facilidade” para estarem mais sós, devo tentar chegar até elas, mostrar-me disponível. Se eu tenho a sensibilidade para perceber que alguém está em dificuldades, sente-se mal-amada ou não se sente olhada, se eu tenho a capacidade de sair de mim mesmo e reconhecer isto, então só tenho de propor algum programa, atividade ou momento em que mostre o meu interesse e disponibilidade para estar com ela.

No fundo, falta-lhes saberem-se olhados, saberem-se amados.

II – Levantar

Ao fim de 14 anos finalmente deixaste de tomar medicamentos. O que é que neste processo te fez levantar? Foi algo gradual ou houve algum momento específico, alguma pessoa concreta?

Eu acho que tive a graça de bater no fundo. Durante os longos anos que tive a depressão, em parte o que me faltou foi ter a oportunidade de bater no fundo. Não é igual para todos, mas para mim foi muito importante o combate das pequenas coisas. Ou seja, começar a dizer “Isto tem de se fazer. Este email é para hoje, não é para amanhã, nem para daqui a pouco”. Se é para levantar, é para levantar.

Agora, para responder à questão de como saí do fundo… De um ponto de vista totalmente objetivo, teria de dizer conhecer-me profundamente amado. Houve uma altura em que perguntava muito aos meus amigos porque é que se levantavam da cama: “Ah, porque tenho coisas para fazer…”, “Está bem, mas porque te levantas da cama?”. Porque tens coisas para fazer, muito bem, mas continua a faltar o Porquê. Eu também tinha coisas para fazer e muitas vezes não me levantei. Continua a haver dias em que não tenho vontade de me levantar propriamente. Portanto, porquê? A única resposta para mim, ainda hoje, é porque me sei profundamente amado.

Ponto final. Porque é que alguém não se quer levantar da cama? Não se sente amado. Eu trabalhei com pessoas sem-abrigo, e quando os conheci diziam que não queriam ter casa, não queriam sair da rua, nem se queriam ir tratar. Passados uns meses que envolveram muitos convites para beber café e dar passeios, de travar uma amizade verdadeira, as pessoas ficaram totalmente diferentes, já queriam sair da rua.

A única resposta para mim, ainda hoje, é porque me sei profundamente amado.

E esta experiência de amor genuíno foi com um familiar, com um amigo…?

Foi uma conversão, talvez um bocadinho solitária. O meu primeiro contacto com católicos acabou por não ser muito feliz, não por culpa deles. No entanto, foi nessa altura que esse amor deixou de ser apenas uma ideia minha e transformou-se em conhecimento. Muito mais do que um sentimento, tornou-se um conhecimento profundo de me saber amado.

Obviamente, muitas vezes acordo e não me sinto amado, nem compreendido. Por vezes, até nas relações com amigos e familiares. Mas a própria resposta a isso vem na afirmação daquilo que eu sei independentemente de tudo: eu sou profundamente amado.

Olhando para trás, com esta experiência de te sentires e reconheceres profundamente amado, acreditas que agora há algo de novo que antes não conhecias ou não tinhas? Ou simplesmente tens um olhar diferente sobre a mesma realidade?

Acho que tenho algo novo, apesar de ter o mesmo de sempre. Muitas coisas foram mudando, sendo eu a mesma pessoa. Tenho as mesmas dificuldades, e muitas delas são um vício. Reconhecendo isso, procuro contrariá-las de forma a serem menos frequentes ou, até mesmo, a criar o hábito bom que as torna menos difíceis. Para mim, isto é muito percetível. Por exemplo, se eu escrever todos os dias três linhas de um trabalho, chego ao final da semana de cinco dias úteis e tenho quinze linhas. Mais tarde, quando tiver de voltar ao trabalho e pegar nele outra vez, já é mais fácil escrever cinco ou talvez dez linhas. Esta constância, esta consistência, vai fazendo com que passe a ser mais fácil.

Acho que a grande dificuldade foi bater no fundo. Para mim foi particularmente vantajoso e revelou-se muito importante para esta transformação radical. No fundo, acredito que esse amor sempre lá esteve, eu é que não o reconhecia.

No fundo, acredito que esse amor sempre lá esteve, eu é que não o reconhecia.

Este processo de sair da depressão já terminou, ou é algo que ainda hoje tens de combater?

Na minha última situação profissional, foi muito claro para mim que estava numa situação que não era para mim. Não estava mal com o sítio, e gostei de muitas coisas, mas simplesmente não era para mim. Foi importante perceber que também não posso só abandonar-me, desertar-me. Estava diante de uma circunstância que me estava a ser muito difícil, e eu reconhecia isto na imensa dificuldade que tinha em me levantar da cama – durante esse período estava a ser especialmente difícil. Por muito que custe, as pequenas vitórias são importantes: levantei-me da cama, vitória, já ganhei à depressão.

Penso que isto é das coisas que pode não ser percetível para quem nunca teve depressão: só o trabalho de me levantar da cama já é uma vitória. É preciso perceber que há certas etapas. No meu caso, sei que normalmente no inverno tenho de ter mais atenção, tenho de sair mais de mim próprio, não me posso fechar tanto em mim. Hoje, por exemplo, estava exausto, foi-me difícil levantar da cama. Eu não costumo ter o problema do “snooze”, mas até fiz um snooze de 10 minutos, soube-me lindamente. Mas a seguir tive de me levantar, teve de ser e ainda bem que o fiz. É algo que envolve mini-lutas constantes.

Noto que também passa muito por controlar os pensamentos. Há pensamentos que são maus e, por isso, há que me distanciar deles. É normal que venham, é normal sentir certas coisas. Por isso é importante perceber se um certo caminho faz sentido ou não. Um caso concreto: eu gosto muito de música e sei que, se num determinado momento, ouvir certas músicas que até gosto, fico arrasado. Portanto, até posso ouvir uma ou duas, mas não fico 40 minutos a ouvi-las. É crucial ir-me conhecendo para perceber onde é que eu começo a descarrilar e ter atenção a isso.

Por muito que custe, as pequenas vitórias são importantes: levantei-me da cama, vitória, já ganhei à depressão.

III – Vida com Sentido

Atualmente, achas que a tua vida vale a pena ser vivida? Porquê?


Eu vivi o secundário com vontade de me mandar para uma linha de metro… A certa altura, quando não vemos nada à nossa volta que valha a pena, é fácil ficar por aí. Felizmente, hoje estou longe disso e tem sido bom ver as pequenas alegrias. Para alguém que esteja tão mal, só o conseguir levantar-se da cama e ir tomar banho, já valeu a pena. Procuro agarrar-me muito a isto e não tanto às derrotas, algo que tinha tendência em fazer. Ainda hoje não consigo fazer muitas das coisas a que me proponho diariamente. Acabei há pouco de admitir que hoje não me levantei da cama à hora que me havia proposto, mas depois levantei-me, não é? Portanto, sim, a minha vida vale sempre a pena ser vivida e até tem muito gozo, nem que seja para estas pequenas coisas.

sim, a minha vida vale sempre a pena ser vivida e até tem muito gozo, nem que seja para estas pequenas coisas.

Levantar da cama é uma coisa fácil quando estamos à espera de algo bom. Nos dias maus, nos dias difíceis, porque é que te levantas? Qual é que é esta grande esperança que, no fundo, justifica levantar nos dias maus?

Porque me sei profundamente amado – eu não consigo responder de outra forma. Obviamente, isto é um problema para quem ainda não teve esta experiência, para quem ainda não sabe o que é. Talvez responda “Ah, está bem, que bonito”, mas o que é facto é que, mesmo nos dias mais difíceis, há sempre uma oportunidade, há sempre algo que eu possa aproveitar.

Recordo-me de um episódio caricato destas coisas que valem a pena: num dia que não estava a ser espetacular, vi uma amiga minha, que é mínima, sentada numa cadeira a abanar os pés por não chegar com os pés ao chão. O dia valeu a pena por isso? Não propriamente, mas é algo que ficou. Há sempre alguma coisa com a qual nos podemos fascinar, que faz com que valha a pena.

Se calhar, num dia com 24 horas, a amostra do que vale a pena pode ser menor do que aquilo que não vale. Agarremo-nos a isso, fiquemos com isso. Há tanta coisa para nos deixar tristes, acho que é preciso ter cuidado para não pormos um peso demasiado grande nessas coisas. Temos de focar nas pequenas coisas e o resto, pronto, olha, rir um pouco, também é importante rir.

Para mim, as pessoas mais provocadoras são aquelas com mais problemas do que eu. Eu posso atar os meus atacadores e tu agora não podes com o braço partido, posso dar graças por isso. Tenho casa, levanto-me da cama num quarto, não é na rua. Devemos procurar reconhecer que há pequenas coisas que valem muito a pena, e mesmo nas chatices há a possibilidade de vitória. Entregar um trabalho e ter uma nota, ou mesmo só fazer uma cadeira passo três anos, é uma vitória. Só por isso já vale a pena.

Há sempre alguma coisa com a qual nos podemos fascinar, que faz com que valha a pena.

Para terminar a entrevista, queres deixar algum conselho para uma pessoa que esteja a passar por uma depressão e aos seus familiares?

Vou usar as palavras de um grande amigo: ânimo e coragem. Lembro-me da primeira vez que me foi dito isto. Sempre que ouvi isto, ficava fulo e pensava “Olha, bom para ti, onde é que eu vou arranjar o ânimo e a coragem?”, mas ficava: ânimo e coragem.

Para os familiares, acho que é muito doloroso. Não calculo o que é apanhar pessoas que podem ser extremamente duras ou exigentes porque estão em sofrimento. É preciso ter paciência e generosidade. Há que perceber que também não é fácil, e é normal muitas vezes ser frustrante e difícil, para as próprias pessoas, pais, familiares, marido ou mulher. Esta pessoa de quem eu gosto, que está próxima de mim, está a sentir-se horrivelmente mal: “Eu estou aqui e mesmo assim sentes-te mal!?”. De certo modo, essas pessoas também recebem uma falta de amor e pensam “Eu não chego”. Portanto, sim, paciência e generosidade, também é difícil para elas.

Vou usar as palavras de um grande amigo: ânimo e coragem.

10 de maio de 2024

Entrevista: João Serra

Redação: Jorge Morais

Ilustradora: Maria do Carmo Romeiras