Vida
Uma conversão do olhar
Introdução:
Vasco Almeida Ribeiro tem 33 anos e é gestor de projeto numa seguradora. Nesta edição, traz-nos um testemunho de esperança. Durante a sua juventude, o Vasco começou a consumir pornografia. Esse consumo retirou-lhe liberdade e alegria, e obscureceu o olhar que lançava sobre os outros. Mas o nosso protagonista não ficou preso aí. Pediu ajuda e conseguiu abandonar o vício, tendo recuperado a liberdade! Hoje, é novamente dono de olhar limpo. É feliz, casado e tem quatro filhos. Nesta entrevista, conta-nos como é que voltou a ser livre, e exorta todos os que estejam a viver uma situação semelhante à que já viveu a nunca desesperar: há sempre uma saída!
ENTREVISTA
Vasco Almeida Ribeiro, muito obrigada por nos receber e por esta sua disponibilidade para nos falar daquilo que foi o seu passado enquanto ex-viciado em pornografia. Vamos começar pelo princípio. Como é que tudo isso aconteceu? Quando é que começou a consumir pornografia?
A memória mais antiga, não sei ao certo… Mas há de ter sido, talvez, entre os 8 e os 10 anos, que tive o primeiro contacto com a pornografia. Era costume irmos a casa de amigos de escola passar tardes sem pais, e havia sempre um amigo ou outro que tinha acesso à televisão e a conteúdos menos próprios. No entanto, se falarmos de consumo ativo e constante de pornografia, diria que foi mais tarde, já por volta dos meus 13 anos, que comecei verdadeiramente a consumir a pornografia.
E em que altura é que percebeu que isso constituía um problema na sua vida?
Eu comecei a consumir porque era algo que toda a gente fazia. Na altura da puberdade, pareceu-me ser algo natural naquele que é o ciclo de vida de um jovem adolescente. Não digo algo inocente - porque o fazia escondido –, mas algo natural.
Mas quando é que eu percebi que isso constituía para mim um problema? Muito mais tarde! Houve um momento da minha vida em que, de facto, uma conversão religiosa fez com que todo o meu olhar diante da vida se alterasse. E, nesse sentido, percebi que aquilo constituía para mim um problema. A pornografia, em si, era objetivamente errada.
A pornografia, em si, era objetivamente errada.
Entre os seus amigos, era tido como algo normal. Não era nada extraordinário, certo?
Sim, eu não era o “estranho” que via! Era, pelo contrário, mais um “normal” que via.
E isso afetava o seu relacionamento com as pessoas no geral: com os seus amigos, com os seus colegas, até com as namoradas? Havia qualquer coisa diferente, pelo facto de ver pornografia?
Isso é algo de que eu só me apercebi mais tarde. Quando estamos a viver alturas mais confusas da vida, como a adolescência, acredito ser difícil perceber o que é que está verdadeiramente errado. Mas agora, olhando para trás, percebo-o perfeitamente.
Como disse, comecei a consumir pornografia muito cedo, e cada vez com maior regularidade. E isso afetou-me, obviamente. Contribuiu para que olhasse para pessoas do outro sexo como sendo, essencialmente, objetos. Alterou a minha forma de ver outras pessoas e de me relacionar com elas. Era muito fácil olhar para as mulheres como objetos mais ou menos desejáveis. Obviamente, agora percebo que não é assim que se deve olhar para outras pessoas.
Contribuiu para que olhasse para pessoas do outro sexo como sendo, essencialmente, objetos. Alterou a minha forma de ver outras pessoas e de me relacionar com elas.
Sendo o consumo de pornografia uma coisa normal e natural entre os seus amigos, o que é que aconteceu exatamente para que o Vasco tenha percebido que o que estava a fazer não era certo, não era correto?
Gosto das duas palavras que usou: normal e natural. De facto, isto era normal, mas não era nada natural. Nunca foi natural, e a prova disso é que, geralmente, as pessoas veem pornografia à porta fechada e sozinhas, como era o meu caso. Esta é a experiência mais comum e, portanto, havia algo de pouco natural, nesse sentido. Se fosse uma coisa natural não haveria, em princípio, a necessidade de a pessoa se esconder. Mas, quando eu consumia, havia sempre alguma vergonha, o querer garantir que aquilo se passava na intimidade, que mais ninguém via… Logo, isso era um sinal de que aquilo não era totalmente natural. Ao mesmo tempo, era normal no sentido de que toda a gente o fazia, de que era uma prática comum.
No meu caso, aos 20 anos, infelizmente tive um namoro que não estava a fazer bem, a começar pelo facto de eu próprio não fazer bem a essa pessoa. Nos meus estudos, era um “baldas”, só pensava em sair à noite e em embebedar-me. Portanto, tinha pouco sentido na vida. E, enfim, cheguei à conclusão lógica de que não tinha sido criado para isso.
Quando tive esta vontade de mudar de vida, eu disse “vou deixar de ver pornografia” e simplesmente não consegui. Isso assustou-me. A experiência de vício que melhor conhecemos é fumar tabaco. Por acaso, nunca fumei durante a adolescência, mas tive amigos que não conseguiam deixar de fumar. Eu sempre achei isso muito estranho: “Como é que não consegues? Como é que tu não és senhor de ti próprio e não consegues parar de fumar?”. E, depois, senti eu próprio isso em relação à pornografia. Senti isso, e fiquei muito assustado.
Quando tive esta vontade de mudar de vida, eu disse “vou deixar de ver pornografia” e simplesmente não consegui.
E depois, pediu ajuda? Qual é que foi a estratégia?
No meu caso, como isto ocorreu no contexto de uma conversão religiosa, a ajuda foi essencialmente espiritual. Primeiro, comecei a rezar mais, pedindo ajuda a Deus. Mas Deus também exige os nossos esforços. E depois fui pedir ajuda àqueles em quem, enquanto católico, reconheço serem os dispensadores da graça divina, que são os padres. Recorri muito à direção espiritual, à confissão. E foi assim que, no meu caso, verdadeiramente consegui, ao fim de vários meses - para não dizer anos - tratar este problema.
A ajuda espiritual foi fundamental, aqui, para tomar essa decisão de se libertar. Quando fala de conversão, o que é que isso significa? O que é que a motivou?
Felizmente, eu sempre fui católico. Por isso, o primeiro passo foi reconhecer-me como o filho pródigo, que primeiro está no meio dos porcos, no meio da lama. Quer isto dizer que percebi e admiti que claramente não estava bem. Por outro lado, assim como o filho pródigo fala nos trabalhadores de casa de seu pai, também eu olhei para a minha volta e para a fé, que nunca me tinha abandonado. Via amigos meus católicos, que têm uma vida tão exemplar, que têm uma vida tão feliz, e percebia que isso me faltava a mim. Sentia-me muito, muito incompleto!
Quando vemos uma pessoa que tem uma harmonia interna, isso atrai sempre e eu quis isso. Percebi que só podia mudar em função de passar a viver de acordo com um princípio fundamental que é reconhecer que Deus se fez homem, morreu e ressuscitou por mim. Se eu começar a levar isso a sério, então a minha vida começa a girar em torno desta realidade, deste facto, e foi isso que me levou a mudar. Depois, na prática, ao reconhecer que Deus me ama a mim, que eu sou um filho muito amado de Deus, isso significa que qualquer mulher à minha volta, e que qualquer homem também, é filha ou filho muito amado de Deus. Nesse sentido, se é um filho muito amado de Deus, eu não posso tratá-lo como um objeto. Não deixa de ser difícil voltar a olhar de outra maneira, é preciso voltar a educar a mente, o olhar, o coração. Essas coisas não acontecem de um dia para o outro.
Não deixa de ser difícil voltar a olhar de outra maneira, é preciso voltar a educar a mente, o olhar, o coração. Essas coisas não acontecem de um dia para o outro.
Quanto tempo é que demorou tudo isso?
Isto vai durar até o fim da vida. É difícil enquadrar isto num período temporal concreto e limitado.
É claro que houve este processo de conversão, e chegou o momento da decisão: “Eu tenho que acabar isto - no meu caso, o namoro -, eu tenho que mudar a vida, eu tenho que rezar mais, eu tenho que mudar muitas coisas na minha vida”, e isso foi todo um processo.
Mas, ao mesmo tempo, foi gradual o aperceber-me de que se calhar não estava a ser justo com as mulheres. Com algumas em particular, e com as mulheres no geral. Não é de um dia para o outro: como estava a dizer, nós vamos aprendendo a educar o olhar, ou seja, a conseguir olhar para uma pessoa e a vê-la como um ser inteiro, e não como uma soma de partes. No caso dos homens, é muito fácil olharmos para as mulheres como uma soma de partes. Olharmos para o corpo, e separarmos tudo o resto. Isso depois é uma educação constante, até o fim da vida.
Acabou de nos contar sobre a sua conversão e a importância que teve esta recuperação e o ultrapassar deste vício. Houve alguma outra estratégia - para além dessa questão espiritual - que o tenha ajudado a combater este vício?
Sim, claro que sim. Para além de toda a ajuda espiritual, depois também há truques. Primeiro, o meu quarto era um espaço onde eu estava sozinho, portanto era garantido que no meu quarto não havia computadores, e o telefone estava longe. Estas são as dicas mais óbvias, aquelas que eu fui utilizando. Outra coisa foi - sobretudo nos primeiros tempos! – tentar estar poucas vezes em casa sozinho. Eu, por acaso, nesta fase da vida morava sozinho. Talvez morasse com o meu irmão, mas pronto, já éramos os dois crescidos, tínhamos um bocadinho a nossa vida.
Eu também procurei ocupar a minha vida com muitas coisas. Há um psicólogo famoso que diz algo bastante provocador: ninguém larga a pornografia, isso é impossível, ninguém a deixa; a única coisa que se faz é substituir a pornografia por coisas mais interessantes. Ninguém tem um trecho do seu tempo que desaparece. Não. O meu trecho continua lá, eu tenho é que o substituir por coisas melhores. Portanto, comecei a estar mais fora de casa, estava envolvido em alguns movimentos da igreja, envolvi-me mais e tentei ocupar o meu tempo com coisas melhores. É outra estratégia.
ninguém larga a pornografia, isso é impossível, ninguém a deixa; a única coisa que se faz é substituir a pornografia por coisas mais interessantes.
Os seus pais estavam a par desta sua dificuldade?
Não estavam. Como qualquer adolescente esperto - não digo inteligente, mas esperto -, eu conseguia fugir aos olhos de qualquer pessoa lá em casa e, portanto, nunca souberam, nunca foi sequer um tema. Obviamente, mais tarde perceberam.
No processo de recuperação, quais foram os maiores desafios que enfrentou?
O maior desafio, no meu caso. foi o desespero! Ou seja, a tendência para desistir e pensar: “Eu não sou capaz, eu quero mesmo mudar de vida, mas não sou capaz, sou fraco” e não perceber que isso faz parte, até, do próprio caminho espiritual. Temos aquela frase tão verdadeira e tão forte de São Paulo: “Quando sou fraco, então é que sou forte”. E é isso mesmo. Às vezes, Deus permite que nós caiamos, mais uma vez, não para desesperarmos, mas para percebermos que somos inteiramente dependentes Dele. Isso é um grande desafio, porque é preciso muita humildade e eu sei que não sou uma pessoa humilde. Tenho a minha soberba e o meu orgulho, e tenho de lutar contra isso. Esta luta foi uma grande dificuldade, ainda hoje é uma grande dificuldade.
O maior desafio, no meu caso. foi o desespero! Ou seja, a tendência para desistir e pensar: “Eu não sou capaz, eu quero mesmo mudar de vida, mas não sou capaz, sou fraco” e não perceber que isso faz parte, até, do próprio caminho espiritual.
Já superou completamente este vício, ou sente que há sempre esse perigo a espreitar a qualquer momento?
Como escreveu São Pedro, há como que um leão que ruge, anda à volta, procurando a quem devorar. Isso para dizer que, graças a Deus, ao fim de vários meses (não chegou a dois anos), consegui deixar de ver pornografia, no sentido em que deixei de ir a um site pornográfico. Nunca mais fui, graças a Deus, já lá vão muitos anos. No entanto, o perigo espreita sempre. Nós vivemos numa sociedade hipersexualizada, até “pornograficada”, e por isso o perigo está sempre ao virar da esquina.
Tem medo de recaídas?
Não diria medo porque, nesta fase de vida em que estou - já tenho trinta e três anos e, graças a Deus, estou bem, estou feliz, estou casado, tenho filhos! -, a vida deu uma grande volta para melhor. E não tenho medo, na certeza de que Deus está comigo!
Mas não ter medo não significa que a pessoa não tenha de estar alerta. Às vezes é preciso fechar os olhos, é preciso desviar o olhar, e às vezes vêm memórias, as da pornografia, e mesmo tudo aquilo que fiz de errado no passado. As memórias não desaparecem, não é? Está cá no disco rígido, e isso significa que às vezes é preciso ter a força de vontade de esquecer, de deixar passar. Não é fácil… não é fácil lidar com memórias.
Há algum conselho que deixaria a alguém que o estivesse a ouvir neste momento e que esteja a passar pelo mesmo problema?
Como disse, o primeiro é não desesperar! Isto é fundamental, é a diferença entre São Pedro e Judas. Ambos cometeram o mesmo pecado: um desesperou, o outro não. É importante não cair no desespero, e perceber que faz parte do caminho querer mudar, mas continuar a cair. Depois, com o tempo, vamos caindo cada vez menos. Por isso, não desesperar é fundamental.
Admito que não estejam só pessoas crentes a ouvir-nos, mas outro conselho para elas é buscar apoio, ajuda espiritual. Não ter medo de se abrir com outras pessoas em relação a este problema. No meu caso, foi com os sacerdotes. E, também, procurar apoio psicológico, se necessário. Hoje em dia, há psicólogos que estão prontos para apoiar pessoas que estejam neste vício.
Em relação ao desespero, é importante perceber também que é normal não se conseguir mudar de um dia para o outro. Às vezes pensa-se: “Eu sou um tipo horroroso e não tenho cura”, mas ignoramos um aspeto: no caso da pornografia, isto de facto afeta-nos ao nível neurológico, ao nível cerebral. Nós criámos maus hábitos que não desaparecem de repente. Portanto, nós estamos de alguma forma doentes, psicologicamente doentes. Por isso, precisamos também de ter paciência, e eu acredito profundamente que o apoio psicológico seja um caminho válido e que faça sentido. Portanto, também é um conselho!
É importante não cair no desespero, e perceber que faz parte do caminho querer mudar, mas continuar a cair. Depois, com o tempo, vamos caindo cada vez menos.
E os pais? O que é que os pais podem fazer para que os miúdos não tenham acesso à pornografia com toda a facilidade?
Para mim e para a minha mulher, este é um dos grandes temas que deve ser falado. E há algo que, de facto, mudou completamente nos últimos quinze, vinte anos. Os meus pais foram apanhados completamente de surpresa com aquilo que aconteceu comigo, mas eu diria que para os pais de hoje já não têm essa desculpa.
O que é que quero dizer com isto? Nós, humanidade, ainda não percebemos bem o impacto que teve o lançamento do primeiro iPhone em 2007. Não percebemos ainda bem o alcance disso tudo. Há dez anos, para fazer uma transferência bancária, tinha de ir a um multibanco, ou a um banco. Hoje, faço isso no meu telemóvel. Isto para dizer que a realidade da forma como nós interagimos com a tecnologia alterou-se substancialmente. Obviamente, é uma coisa boa, mas também é perigosa. Há uma tendência muito preocupante de os pais acharem que, para preparar os filhos para o mundo futuro, eles devem ser expostos à tecnologia o mais cedo possível. Desde o berço que têm iPads na mão para comer, para ser distrair, etc. E depois, aos sete, oito anos, já têm um smartphone porque é importante estarem contactáveis.
Atualmente, resvalar para acessos pornográficos é um passo que está, literalmente, à distância de um clique. E os pais, desenganem-se, não achem: “Ai não, o meu filho nunca vai ver isso”. Eu lembro-me que, aos oito anos, já se falava sobre isso na escola. Na altura, não eram smartphones, mas já se falava de um ou outro canal de televisão que, a partir de determinada hora, passava conteúdos pornográficos. Eu não via, mas havia pessoas (pessoas que tinham famílias mais desestruturadas, que às vezes não estava o pai, ou não estava a mãe, ou não estavam os dois) que sabiam que isso existia e que depois falavam. Transpondo para a nossa realidade, agora pode dizer-se: “Olha, sabes que no teu smartphone, se fores a este site e carregares aqui, então vais poder ver isto, isto e isto.”
Peço desculpa, se calhar desviei-me um bocadinho da pergunta, mas queria dizer que, hoje, para os pais, é preciso estar em alerta máximo em relação à exposição que os filhos têm à tecnologia. Para além de eu achar que é uma grande falácia achar-se que se deve expor crianças a tecnologia para depois saberem lidar com ela mais facilmente. As crianças têm de fazer outras coisas: têm de brincar, têm de estar em contacto com a natureza, têm de ler livros e alimentar o seu mundo de imaginação. A tecnologia virá mais tarde, quando tiver de vir.
Atualmente, resvalar para acessos pornográficos é um passo que está, literalmente, à distância de um clique.
18 de julho de 2024
Jornalista: Dora Isabel Rosa
Redação: Afonso Direito e Francisco Pedro
Edição: Maria Alvim