Beleza

A Beleza que não morre

O Sofrimento como escuridão que ajuda a ver a luz

“Tormento do Ideal”

Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre;
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra
Ao pôr-do-sol e sobre o mar discorre.

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,
Tropeço, em sombras, na matéria dura,
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o batismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas
Para sempre fiquei pálido e triste.

        

Antero de Quental

Haverá maior dor para o Homem do que encontrar a Beleza que não morre e perceber que, afinal, ela não tem nada de extraordinário? No poema “O Tormento do Ideal” de Antero de Quental, o poeta está triste. Subiu à montanha mais alta, viu tudo aquilo que havia para ver, porém, a distância fez com que tudo se tornasse muito pequeno e indistinguível; ao longe, todas as coisas se tornam parecidas e estamos impossibilitados de ver os contornos, as cores, os detalhes.

A escuridão produz um efeito muito parecido com o da distância: todas as coisas se tornam irreconhecíveis. No entanto, como também dizia o poeta Antero num artigo publicado n’ O Instituto em 1866: “Basta uma pequena luz ao longe para se ver aonde vamos.”

Para aqueles que caminham, há uma luz que ilumina todas as coisas e sem ela não seria possível ver o caminho: “essa luz brilha nas trevas e as trevas não conseguiram apagá-la”- permite ver e distinguir as formas, perscrutar os conteúdos. A luz, em tantas situações, dá-nos as certezas que tantas vezes perdemos na selva escura da vida. Mesmo numa vida marcada pela escuridão, basta uma centelha de luz – por mais pequena que seja – para iluminar tudo o resto.

Neste poema, o poeta fica desiludido porque achava que, tal como Dante no Paraíso, tal como Vasco da Gama n’Os Lusíadas, seria capaz de ver e perceber o significado de tudo. Para nós, as coisas não são apenas forma, também são conteúdo. O sofrimento, tantas vezes entendido como uma má fase, parece uma perda de tempo: muda-nos os planos, vem sem pedir licença, muda o nosso estado de espírito e a nossa disposição, parece-nos vazio, uma piada de mau gosto em que não percebemos o possível significado que possa estar oculto. De uma forma geral, sofrimento e escuridão estão associados: talvez porque a invisibilidade das coisas provocada pela escuridão nos faça sofrer (a nós que fomos feitos para olhar para a “Beleza que não morre”), ou então porque o sofrimento, pela dor que comporta, tende a apagar o olhar. Mesmo que à nossa volta reinem as trevas, há uma luz que não se apaga, que se torna percetível e contrasta, pela sua natureza, com a escuridão. Esta luz também ilumina os nossos obstáculos e, podendo vê-los bem, não parece tão difícil ultrapassá-los ou conviver com eles. Por mais dificuldades que o sofrimento nos traga, por mais vezes em que faça o mundo perder a cor e a forma, o sofrimento não termina no vazio.

Como podemos ter a certeza de que esta luz existe? Também podemos ser atormentados pelo ideal: as coisas que não são como nós as idealizamos (e o sofrimento prova-nos isso mesmo), mas cabe-nos aceitar aquilo que nos é dado viver, sabendo que, mesmo quando tudo parecer apenas escuridão, até as maiores dificuldades nos podem ensinar um modo novo de olhar para a vida, um gesto de amor pode fazer-nos recuperar a esperança que tinha desaparecido, um sorriso ou o abraço de um amigo podem fazer ressurgir o que já achávamos perdido. E misteriosamente o nosso olhar sobre tudo muda, até sobre o sofrimento! 

A Beleza não morre porque está sempre lá, à espera para ser admirada; o nosso olhar é que, por vezes, pode estar adormecido ou anestesiado. Esta Beleza, ao contrário do que Antero pensa, não está num ideal (pensemos no mal que as ideologias fizeram ao nosso mundo), e, sem dúvida, nunca será para nós causa de tristeza. É visível somente através dos gestos de amor que dão forma, cor, textura e significado à nossa vida.

Ricardo Formigo

Universos Paralelos

Diz o ditado popular que o que os olhos não veem, o coração não sente. E costuma ser mesmo assim. Mas parece-me que com a ajuda dos artistas conseguimos, por vezes, sentir o que não vemos, sentir aquilo que está muito para além do nosso olhar. 

Quantas vezes temos a sensação de conhecer um ambiente no qual nunca estivemos diretamente imersos, mas que apenas vislumbrámos através de um filme? Quantas vezes ficamos de repente tristes, por ouvir uma música melancólica? Ou, pelo contrário, subitamente animados, ao ouvir uma música alegre?

Parece que as obras de arte funcionam como condutas por onde circulam vivências e mundividências que se tornam comuns. Ou como linhas de costura através das quais se cose o que antes estava rasgado. É impressionante pensar em como são capazes de estabelecer pontes entre diferentes pessoas – entre os artistas que as criam e quem as aprecia -, unindo todos. 
Atuam com tanta força - e, ao mesmo tempo, com tanta subtileza – que parecem ter vida própria. Talvez seja este um dos maiores poderes da arte: o de agregar pessoas, ligando e colando o que antes estava disperso.

Uğur Gallenkuş, natural de Istambul, é um artista que tem o condão de criar obras que – precisamente - unem. E que, por esse motivo, muito admiro. Nascendo e vivendo na Turquia, foi inevitavelmente tocado pela dura realidade da guerra que se vive na vizinha Síria. E foi o confronto com esse conflito armado que o levou a começar o trabalho artístico pelo qual hoje é famoso.

E em que consistem as suas obras? Uğur Gallenkuş faz colagens de fotografias, nas quais justapõe universos paralelos. A guerra e a paz, a riqueza e a pobreza, o luxo e a miséria: eis algumas das dualidades que numa mesma colagem contrapõe.

Evidenciando estes contrastes, os trabalhos deste artista fazem muito. Denunciam a existência de grandes disparidades sociais. Despertam consciências. Despoletam a tomada de medidas concretas para a erradicação de grandes males e injustiças. Abrem olhos e corações, levando muitas pessoas a conseguir sentir aquilo que talvez nunca tenham visto diretamente. Numa palavra, humanizam.

Maria Pessanha Moreira

  • 7ª Edição

    Grandiosidade e Grandeza

    Ler
  • 6ª Edição

    A esperança é a última a morrer

    Ler
  • 5ª Edição

    Às nossas queridas mães

    Ler
  • 4ª Edição

    Wonder: cada pessoa merece ser admirada e tem uma missão a cumprir

    ler
  • 3ª Edição

    Um olhar auspicioso

    Ler
  • 2ª Edição

    A Beleza que não morre

    Ler
  • 1ª Edição

    Os homens são como os rios

    Ler